Após 60 anos, Fazenda Antas é desapropriada

02/03/2014

Decisão do Supremo Tribunal Federal no início de fevereiro, manteve desapropriação da Fazenda Antas, na zona rural de Sobrado. 

A terra que por muitos anos foi alvo de conflito entre trabalhadores e latifundiários, e deu início à história das Ligas Camponesas na Paraíba, com a luta de João Pedro Teixeira, agora virou motivo para comemoração. A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), no início de fevereiro, manteve a desapropriação da Fazenda Antas, na zona rural do município de Sobrado, distante cerca de 60 quilômetros de João Pessoa, e devolveu aos trabalhadores a esperança de ter um pedaço de terra para garantir o sustento da família.

Foram 60 anos de luta, ameaças, despejos, destruição de lavouras e violência. Nesse intervalo de tempo, muitas pessoas morreram; outras nasceram; e algumas perderam a esperança.

As famílias dos acampados souberam da decisão do STF no dia seguinte. Alguns não conseguiram segurar as lágrimas, a exemplo de Marlene Maria do Nascimento, que acompanhou a luta desde a adolescência. “Meu pai já vivia nesse conflito, ele foi escravo por muito tempo”, declarou.

O processo foi retomado na Justiça há 15 anos, mas a luta começou em 1954, quando o movimento organizado por camponeses, que reivindicavam a reforma agrária, foi alvo da repressão da Ditadura Militar. O líder João Pedro Teixeira foi assassinado em 1962, e logo depois sua esposa, Elizabeth Teixeira, que atualmente mora na capital paraibana, assumiu a presidência da Liga de Sapé. Ela continuou a luta do marido, em defesa dos trabalhadores rurais.

O tempo passou e dezenas de famílias continuam acampadas na comunidade de Antas, às margens do rio Gurinhém, em condições precárias de sobrevivência. Os camponeses resistiram à pressão e continuaram lutando pela reforma agrária. Um deles foi João Victor Oliveira, hoje com 53 anos.

Anos mais tarde, as ameaças também se estenderam a Oliveira. “Por muitas vezes tive que fugir de madrugada com as crianças nos braços para não ser morto. As ameaças eram constantes”, afirmou. Segundo ele, foram anos de conflito pesado e muita violência. O trabalhador chegou a ser expulso da fazenda.

“Depois da expulsão, eu e outros trabalhadores decidimos ocupar a fazenda novamente e foi aí que o conflito começou. O proprietário destruía as lavouras e aquilo nos causava revolta”, destacou. O medo era tanto que os camponeses cavavam buracos nas paredes e no chão para servir de esconderijos. “Ninguém tinha o direito de ficar de bobeira conversando, era bala para todo lado”, disse o trabalhador.

O conflito em Antas envolveu gerações. Filho de posseiro, Manoel Paulo Francisco, 54, viu o pai chorar pela situação.

Quando se envolveu diretamente na luta, os filhos ainda eram pequenos. Hoje já é avô. Com a neta de cinco meses nos braços, Francisco disse que tem esperança de dias melhores, com dignidade e respeito. “Eu nunca tive isso, mas sempre lutei para que meus filhos e netos tenham uma vida diferente”, ressaltou.

FAZENDA PASSA A SER DOMÍNIO DA UNIÃO

O superintendente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária na Paraíba (Incra-PB), Cleofas Caju, disse que a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) representa um marco na luta dos camponeses no Estado. Segundo ele, há 17 anos os trabalhadores da localidade requereram ao órgão a desapropriação do imóvel (Fazenda Antas) alegando que a propriedade não estava cumprindo o papel social. “A partir daí se travou o conflito, inclusive com o assassinato de um trabalhador, mas a luta continuou”, declarou.

Atendendo aos apelos dos camponeses, o Incra abriu o processo de vistoria para verificar se o imóvel cumpria ou não o papel social. Caju lembrou que em 2006 o governo federal decretou a área como de interesse social para fins de reforma agrária. “Com o decreto o Incra teve a possibilidade de avaliar o imóvel, mas outra decisão acabou suspendendo os efeitos do decreto”, afirmou.

Agora, o Incra vai aguardar a publicação do acórdão no Diário Oficial para então fazer a vistoria de avaliação e aferir o valor do imóvel. Segundo o superintendente, nada impede que o proprietário da fazenda manifeste o desejo de recorrer, “mas acredito que não surtirá efeito algum”. Ele disse ainda que vai pedir apoio da polícia para garantir a segurança dos peritos agrários.

Nesse momento, conforme explicou Caju, o imóvel passa a ser domínio da União, sob a governança do Incra. “Vamos proceder com a seleção e assentamento das famílias”, declarou. O superintendente explicou que a fazenda Antas tem dimensão de 507 hectares. Inicialmente cerca de 60 famílias estavam envolvidas diretamente no processo, mas muitas desistiram da luta e hoje algo em torno de 20 ainda aguardam a divisão da terra.

ACAMPADOS REVELAM PERDAS HUMANAS

Os dias de trabalho na fazenda Antas também deixaram marcas na memória de Joseano Idalino Pereira, hoje com 43 anos. O que ele mais lamenta é o fato da esposa ter morrido (de causa natural) sem ver a divisão da terra. “Ela sofreu junto comigo. Era o maior sonho dela, mas infelizmente isso não foi possível. Ela me deixou com sete filhos”, declarou.

Idalino chorou copiosamente quando soube da decisão do STF. Mesmo sem entender a linguagem jurídica, pelo baixo grau de instrução, ele comemorou o indeferimento do mandado de segurança. “Os homens da Justiça estão do nosso lado, porque é aqui que está a verdade, é aqui que está a luta de muitos anos”, comentou o trabalhador, que também teve medo de morrer nesse conflito.

Conforme relato de Idalino, ele trabalhou em regime de escravidão na fazenda Antas. “Nunca tive o gosto de pegar em dinheiro. A gente recebia um vale para comprar na cidade, e não dava para comprar nada. Era um sofrimento, era escravo mesmo”, frisou. Ele contou que uma vez capangas da fazenda correram atrás dele para dar uma surra. “Deram bobeira e eu corri, só pensava nos meus filhos, que já estavam sem a mãe”, comentou.

Conflito de terra é o mais antigo do país

Na avaliação de Iranice Gonçalves, advogada e integrante da Comissão Estadual da Verdade, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) é um marco histórico, não apenas pela questão da desapropriação em si, mas pela história que vem desde a luta de João Pedro Teixeira.

“O que acontece hoje é uma continuidade do que ocorreu em 1962, com a morte de João Pedro. Naquela época já se reivindicavam os direitos trabalhistas, a pobreza era grande e foi iniciada a luta pela reforma agrária na fazenda de Antas”, explicou.

Ela lembrou que os camponeses passaram dias difíceis, dias de escravidão. “Felizmente os camponeses estão cada vez mais conscientes da importância deles na sociedade civil e política do Estado”, frisou Iranice, que acompanhou o conflito, no final dos anos 1990, como advogada do processo. Segundo ela, a ocupação na fazenda Antas é considerada como o conflito de terra mais antigo do país.

O indeferimento do mandado de segurança, por sete votos a favor e quatro contra, significa a vitória dos camponeses. “O processo continua em Recife, mas deve se seguir a recomendação e manter a desapropriação da área”, ponderou Iranice. No ano de 1997, era forte a pressão para que os posseiros deixassem a terra, o que só aconteceu após uma liminar. “Durante todo esse tempo os trabalhadores resistiram”, declarou.

A fazenda Antas inclui as terras que pertenciam ao sítio Antas do Sono, que tinha como proprietário Manoel Justino, pai de Elizabeth Teixeira. Manoel Justino queria que a filha, a todo custo, abandonasse João Pedro e os filhos, pois não se agradava da luta do genro. Elizabeth nunca atendeu esse pedido do pai. Descontente, Manoel Justino vendeu o sítio e o novo proprietário mandou expulsar a família de Pedro Teixeira, que se recusou a deixar o local e travou uma luta judicial.

A religiosa Marlene Burgers, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), também comemorou a decisão do STF.

“É um importante acontecimento histórico, pois é o berço da luta de João Pedro Teixeira”, declarou. Ela contou que foi a portadora da notícia para Elizabeth Teixeira. “Elizabeth ficou emocionada e muito feliz, pelo que conheço dela, foi a notícia mais importante que já recebeu”, frisou. Segundo Marlene, no próximo dia 2 de abril será realizada uma caminhada refazendo o trajeto de João Pedro no dia em que ele foi assassinado.

AÇÃO DAS LIGAS CAMPONESAS EM SAPÉ

A casa onde morou João Pedro Teixeira com a mulher Elizabeth e os filhos do casal se transformou no Memorial João Pedro Teixeira, local de visitação, próximo à Fazenda Antas, que fica aberto de segunda a sexta-feira. Cândido Nascimento é um dos responsáveis por contar a história das Ligas Camponesas a quem visita o local. “Também faço parte dessa luta que se arrasta há 60 anos e teve início com João Pedro. Conto essa história com muito orgulho”, declarou.

Segundo Cândido, João Pedro Teixeira participou da criação das Ligas Camponesas no engenho Galiléia, na Zona da Mata de Pernambuco. Depois disso voltou à Paraíba e deu início às Ligas Camponesas em Sapé, após o conflito com o sogro, pai de Elizabeth Teixeira que não aceitava a união da filha com o trabalhador. “O pai de Elizabeth tinha ódio de João Pedro, por conta da bandeira de luta que ele defendia. Ele chegou a propor, por diversas vezes, que Elizabeth abandonasse o marido e os filhos, o que ela nunca aceitou”, afirmou.

De acordo com Cândido Nascimento, João Pedro Teixeira foi a João Pessoa para tratar de assuntos referentes a uma ação de despejo.

“Foi nesse mesmo dia que ele foi assassinado, fizeram uma armadilha para ele e o mataram com tiros nas costas. A partir desse dia Elizabeth prometeu dar continuidade à causa pela qual o marido morreu, ele será sempre lembrado como o grande líder das Ligas Camponesas”, frisou. Sua luta incluía a Reforma Agrária e a justiça no campo, pois muitos trabalhadores eram tratados como escravos. “Não havia respeito para com os trabalhadores, a mão de obra era explorada, e isso muito revoltava João Pedro”, destacou.

Em uma das paredes do Memorial, a foto da família de João Pedro e Elizabeth chama a atenção de quem visita o local. A história do líder é tão difundida que até as crianças da localidade já sabem contá-la e reproduzi-la.

“Foi nessa casa que, por muitas vezes, João Pedro deixou Elizabeth e as crianças para lutar pelos direitos dos trabalhadores. A cada vez que ele saía de casa beijava e abraçava cada um dos filhos, porque sabia que aquela poderia ser a última vez que se viam”, contou Cândido.

Fonte: Jornal da Paraíba

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