Por Dom José Maria Pires
Introdução:
A questão agrária esteve sempre no bojo de grandes conflitos em nossa terra. Desde o tempo das sesmarias, a propriedade privada foi caracterizada por latifúndios improdutivos ou por imensos canaviais ou pastagens. As terras nordestinas, especialmente a várzea e o brejo mostraram-se aptas para uma e outra finalidade. Desde os tempos do Brasil-colônia sempre se plantou cana e se criou gado nessas terras e foi possível a convivência dessas atividades em grande escala com as culturas de subsistência de que viviam os posseiros e pequenos proprietários. Questões surgiam, vez por outra, entre proprietários e moradores, mas eram resolvidas no entendimento, na justiça ou pela força quando o pequeno era sempre o perdedor. Mesmo assim havia um certo grau de convivência ate porque o proprietário necessitava dos braços de seus moradores para tocar os engenhos ou cuidar do gado.
A situação se modificou completamente quando surgiram as Ligas Camponesas que despertaram os pequenos agricultores para sua situação de semi-escravidão e para seus direitos. Quase simultaneamente foi crescendo o movimento sindical. A Igreja mostrou-se, desde o início, solidária com esse movimento e viu nele uma espécie de antídoto contra o laicismo das Ligas Camponesas. Ela colaborou financeiramente com os Sindicatos, deu-lhes espaço em imóveis paroquiais e apoio nas pregações. O MEB (Movimento de Educação de Base), que teve como seus grandes promotores D. José Vicente Távora e D. Eugênio Sales, desenvolvendo uma alfabetização conscientizadora através do rádio, veio dar alma e racionalidade ao movimento popular.
Foi quando aconteceu o golpe militar de março de 1964. A plataforma apresentada era a necessidade de combater o comunismo e a corrupção. Havia, na época, verdadeiro pavor do comunismo ateu. Fizeram-se grandes mobilizações populares com centenas de milhares de pessoas cantando e rezando para que Deus defendesse o Brasil do perigo do comunismo. Aliado às medidas populistas do governo João Goulart, estava criado o clima favorável a uma intervenção militar que contou imediatamente com a adesão da burguesia, de outras forças conservadoras e de grande parte da Igreja Católica. O golpe militar foi acolhido com entusiasmo pela maioria da população. Não houve derramamento de sangue e o Marechal Castelo Branco, nomeado presidente da República, teve uma atuação que despertou simpatia em todas as classes sociais. O Estatuto da Terra terá sido, talvez, o marco mais significativo desse tempo. E, ao promulga-lo, o Marechal-Presidente declarou que “a revolução não foi feita para defender os privilégios de uma minoria, mas para o bem de todo o povo”. Só que essa lua-de-mel não foi muito longa. Eu mesmo, que havia telegrafado ao Governador de Minas, Magalhães Pinto, felicitando pelo êxito da revolução que ele, corajosamente havia iniciado com a proclamação de que Minas, a partir daquele momento, se rebelava contra o governo federal, tive que viajar, poucas semanas depois, para Belo Horizonte e pedir audiência ao General Mourão Filho comandante da ID-4 para protestar contra o que eu considerava uma arbitrariedade: a prisão de sacerdotes que agiam de acordo com as orientações da hierarquia e estavam sendo presos ou molestados pelas forças de segurança. A situação foi se complicando com a prisão de estudantes e de agricultores. Espalhou-se medo e terror no campo e na cidade. Sob a suposição de que as Ligas Camponesas eram inspiradas no comunismo, elas foram praticamente colocadas fora da lei, os sindicatos de trabalhadores rurais passaram a ser vigiados e inúmeros agricultores foram detidos e interrogados. O clima favorecia as pretensões dos grandes proprietários de terras cujas oportunidades foram extremamente ampliadas com os dois novos projetos governamentais, a saber, o gado e o pró-álcool. Para o Brasil, era muito interessante desenvolver a pecuária e o plantio da cana de açúcar visando o mercado internacional. Só que isso exigira grandes extensões de terra e, no Nordeste, não havia essas grandes extensões porque as propriedades estavam salpicadas de pequenas lavouras de milho, de feijão, de algodão, de fava, de macaxeira e de mandioca bem como do criatório de animais domésticos: galinhas, porcos, perus e outros. Para terem grandes áreas contínuas, os proprietários eram forçados a fazer acordo com os posseiros oferecendo-lhes um preço razoável por suas lavouras. Muitos aceitaram a oferta e foram ampliar as favelas na periferia das cidades. Com o dinheiro da indenização, compravam um lote, construíam uma casa bem modesta e recomeçavam a vida vendendo bebidas, artesanatos e outras miçangas. A situação pior era dos filhos. Os rapazes não se sentiam bem, pois não encontravam uma atividade que os empolgasse. Igualmente as jovens que, no interior, dedicavam-se aos afazeres domésticos e à agricultura. Agora não tendo o que fazer e necessitando de dinheiro para comprar roupas e artigos de beleza, se tornavam presas fáceis do primeiro gigolô que aparecesse. Nesse contexto, é fácil entender que o aparecimento da droga e o desmedido crescimento da prostituição na periferia das grandes cidades foram, entes um problema social e não moral. Os jovens foram para a droga porque precisavam de dinheiro e, não tendo escolaridade ou conhecimentos profissionais que lhes permitissem o acesso ao mercado de trabalho, se tornavam presas fáceis para o mercado da droga e da prostituição. Para se vencer o pecado, era necessário atacar suas causas. E foi o que procurou fazer a Igreja do Nordeste dando total apoio às famílias que lutavam para permanecer no campo resistindo às propostas de vantagens na cidade.
É aqui que entra a saga de Alagamar.
Já em uma de suas assembléias, a Igreja da Paraíba havia aprovado a seguinte diretriz: “Solidarizar-se com o povo na luta em defesa de seus direitos e denunciar tudo aquilo que desrespeita os Direitos Humanos e a justiça”. E, em conseqüência, formulara este compromisso: “Nós nos comprometemos a viver melhor o mistério da Encarnação: tentando ser pobres e estar com os pobres e, assim, irmos nos afastando do centro e irmos nos aproximando das margens. Sem excluir ninguém, mas conscientes de que os pobres são os destinatários do Evangelho, queremos deixar clara nossa convicção de que nos pequenos é revelado o conhecimento da salvação e, na medida em que se conscientizam, tornam-se a força libertadora do mundo.”
O que era Alagamar: No período a que nos reportamos, Alagamar era um extenso latifúndio composto de vários sítios ou fazendas entre eles, Alagamar e Piacas. Ficava nos municípios de Itabaiana e Salgado de São Felix, no Estado da Paraíba. O antigo proprietário, Sr. Arnaldo Maroja, dava liberdade aos moradores para cultivarem a terra plantando lavouras de subsistência e criando alguns animais. O proprietário contentava-se com o foro que lhe era pago em dia. Eram cerca de setecentas famílias espalhadas por aqueles mais de 10.000 hectares de terra. A Federação dos Trabalhadores na Agricultura conseguiu cadastrar 446 famílias com um total de 2.723 pessoas. O Senhor Maroja faleceu em 07 de novembro de 1975 e não deixou herdeiros necessários. Havia, porém, feito um testamento em que determinava que as terras fossem vendidas e o dinheiro distribuído com as pessoas nomeadas no testamento. Os agentes de pastoral que trabalhavam na região e conheciam o problema, eram de parecer que o governo deveria adquirir a fazenda e implantar ali um núcleo de colonização e reforma agrária com as 446 famílias cadastradas (700, segundo os cálculos da Pastoral Rural). Não o fez e a propriedade foi repartida entre as pessoas contempladas no testamento. A solução defendida pela Pastoral Rural era a desapropriação por interesse social como estava previsto no artigo 18 de Lei 4.504. A CONTAG (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura) era também de opinião que só a desapropriação poderia assegurar aos trabalhadores a permanência na terra que cultivavam e da qual dependia sua subsistência.
É interessante recordar qual foi, na época, o comportamento das entidades, das pessoas e dos grupos envolvidos na questão de Alagamar:
1. Os compradores: Um deles fez logo plantar cana em 14 sítios, invadindo posses legítimas. Outros levantaram cercas para dividir o terreno em mangas para o gado em terras onde os agricultores faziam suas plantações. Trouxeram gado de fora e o soltaram na área causando sérios prejuízos às plantações dos moradores, sobretudo às bananeiras.
2. Os moradores: Qual foi a reação dos agricultores? Mesmo antes que surgissem problemas na área, já se mostravam unidos e partilhavam o que possuíam. Quando surgiram as dificuldades, procuraram seus órgãos de classe, a saber, o sindicato e a Federação. Nunca recorreram à violência. Procuravam agir dentro da lei e buscavam contato com as autoridades. Arrancaram as cercas que foram feitas em suas posses, tangeram e prenderam o gado solto que devorava suas plantações. Reuniram-se em grande número (cerca de 300) para arrancar a cana plantada indevidamente. Deram toda assistência possível aos oito companheiros que foram presos por ordem judicial ou detidos por ordem da Segurança Nacional.
3. E a FETAG? (Federação dos Trabalhadores na Agricultura) A princípio teve uma atitude corajosa denunciando os fatos lesivos aos agricultores e pleiteando a desapropriação da área. Aos poucos, porém, foi abandonando a causa da desapropriação em razão das pressões recebidas. Acabou se tornando mais um freio do que um incentivo e apoio à causa dos trabalhadores rurais que queriam permanecer na terra sem cederem a um acordo que lhes era prejudicial. Questionado por nós, o advogado da Federação afirmou que era pago para ajudar a Federação dos Trabalhadores a se ajustar à política agrícola do governo. Como nós da Igreja, não tínhamos nenhum compromisso com a política de quem quer que fosse, decidimos partir sozinhos na defesa do que considerávamos o direito dos agricultores. E argumentávamos: Quem é que está errado? Quem é o agressor? As 446 famílias (ou 700, segundo outros) que residem e trabalham nessa terra ou uma dúzia de pessoas abastadas que residem confortavelmente em Pernambuco? Nessa demanda, quem é o agressor? O comprador que faz cercas para dividir em mangas terras cultivadas pelos moradores ou os moradores que arrancam essas cercas? Quem é o agressor? Os compradores que trazem gado de fora e o soltam nas lavouras ou os lavradores que tangem e prendem o gado para que não estrague suas plantações? Quem é o agressor? O comprador que planta cana nas posses dos moradores ou estes que arrancam a cana plantada para defenderem seu patrimônio? Quem é o agressor? O homem pacato que reside ali com sua família há 30, 40,50 ou mais anos ou o chegante que, só pelo fato de ter mais dinheiro, se investe no direito de ser considerado senhor absoluto da terra? E se, como está claramente comprovado, as agressões partem dos proprietários, por que, até agora, somente agricultores foram presos ou detidos quando não fizeram outra coisa se não defender, por meios não violentos, os seus direitos?
Conseqüente com essa linha de reflexão, a Igreja da Paraíba tomou ostensivamente posição em defesa dos agricultores de Alagamar. E o fez por fidelidade ao Evangelho e por amor ao povo sofredor. A exemplo de Jesus, fizemos uma opção pelos oprimidos embora reconhecendo que estávamos ainda muito longe de levar às conseqüências mais pesadas esse compromisso. Reconhecíamos que estávamos caminhando nessa direção e que o número dos que se comprometiam com a causa do povo crescia continuamente. Deixávamos sempre claro que, como Jesus, não éramos contra os ricos nem queríamos vê-los despojados de seus bens. Mas lutávamos contra a ambição de muitos deles que impediam a sobrevivência e o desenvolvimento dos pobres. Afirmávamos que o desenvolvimento de uma Nação não se podia medir apenas pelas indústrias implantadas, pelas exportações feitas ou pelo dinheiro que se acumulava. O desenvolvimento deveria medir-se antes de tudo pelo índice do bem estar de toda a população. Insistíamos que, numa sociedade bem organizada, os meios de produção deveriam ser colocados a serviço do bem comum e não do enriquecimento individual. Proclamávamos alto e bom som, que os compradores de Alagamar não precisavam daquelas terras para viver, enquanto os agricultores que nelas residiam e trabalhavam dependiam delas para seu sustento e de suas famílias. O bem comum estava, pois, exigindo que elas fossem desapropriadas. Sustentávamos com clareza e altivez, que a compra por dinheiro não era, não podia ser a única nem a principal fonte do direito de propriedade. Afirmávamos que a necessidade e o trabalho eram títulos mais nobres e mais legítimos. Quem precisava da terra para viver tinha mais direito do que quem não precisava. Quem a cultivava com carinho e dela tirava seu sustento era mais dono do que aquele que tinha dinheiro e pôde comprá-la, mas nunca tinha plantado um caroço de nada.
Alegava-se contra essas razões, que, nosso Direito só reconhece como dono quem comprou e tem título de propriedade. Retrucávamos que nem tudo o que é legal é legítimo ou é o mais legítimo. A campanha dos agricultores e nossa era exatamente no sentido de se dar legalidade ao direito legítimo proveniente da necessidade e do trabalho. Aliás, já tínhamos o exemplo disso quando o Governo desapropriou Mucatu que tinha menor extensão e menor número de famílias. Poderia, pois, faze-lo com maior razão em Alagamar e em outras situações semelhantes até que uma nova legislação consagrasse o direito do fraco e do necessitado. Até certo ponto, essa legislação já existia: era o Estatuto da Terra que previa o caso de Alagamar quando prescrevia: “As desapropriações a serem realizadas pelo Poder Público nas áreas prioritárias recairão sobre (…) as áreas que apresentem elevada incidência de arrendatários, parceiros e posseiros” (Art. 20, V) Alagamar estava nesse caso. Ficava dentro da área declarada prioritária para reforma agrária e tinha centenas de arrendatários e posseiros.
E a desapropriação aconteceu, depois de muita luta e sofrimento. O Presidente Ernesto Geisel marcara visita à Paraíba. Os agricultores de Alagamar, cientes da visita, se reuniram, pacificamente, em frente ao Palácio da Redenção, sede do Governo. Traziam faixas pedindo a desapropriação. A Polícia não permitiu que eles continuassem exibindo as faixas e as recolheu todas. Eles responderam: “Tomam nossas faixas, mas não podem tomar nossas vozes”. E continuaram cantando seus hinos durante os intervalos da recepção ao Presidente da República, o que lhe chamou a atenção e ele quis saber o motivo daquela presença estranha. Informado corretamente da situação, ele não fez comentários. Mas, na semana seguinte, saiu o decreto de desapropriação de 2.000 hectaresem Alagamar. Não era tudo o que pleiteavam os agricultores, mas já era um bom começo que foi festejado pelo povo de Alagamar com Missa, foguetório, comida e muita alegria.
No início, foram apenas 2.000 hectares desapropriados. Posteriormente, o restante do imóvel foi também declarado de utilidade pública para fins de desapropriação e passou a integrar a Cooperativa dos Trabalhadores Rurais de Alagamar. Hoje não se reconhece mais a antiga propriedade que foi totalmente utilizada e permite às antigas famílias ali residentes um nível de vida considerado bom e uma convivência humana de verdadeira solidariedade.
Estávamos certos de que a desapropriação de Alagamar seria um exemplo bem concreto de que o Brasil tinha condições de acabar com, a fome e a penúria do homem do campo. Isso exigiria uma nova orientação da política agrária do Governo dando prioridade à produção de alimentos mais do que à exportação. Como essa nova orientação contrariava os interesses dos poderosos, ela só aconteceria na medida em que o povo se mobilizasse para fazer sentir seu sofrimento e seus direitos. Foi assim com o Povo de Deus no Egito. Foi sempre assim na história. Na época de Alagamar, a Igreja procurava apoiar o povo para que ele se organizasse e assumisse a responsabilidade dos passos de sua caminhada, buscando a transformação das estruturas de opressão e a modificação das leis que impediam a melhoria substancial de suas condições de vida. A luta dos agricultores de Alagamar deveria servir de exemplo a outros grupos que se sentissem oprimidos pela fome ou pelo subdesenvolvimento. Indígenas, favelados, afrodescendentes, pescadores deviam unir-se e organizar-se, no espírito da Não Violência Evangélica e teriam assegurada a conquista de sua liberdade e promoção. O slogan era: “Povo unido jamais será vencido”. O que D. Helder Câmara corrigiu em: “Povo unido e organizado jamais será vencido”. O conteúdo desse slogan tornou-se verdadeira mística na vida dos pequenos. Eles o expressavam com propriedade em suas reflexões e em seus cantos. Era maravilhoso ouvi-los cantar com entusiasmo: “Eu acredito que o mundo será melhor quando o menor que padece, acreditar no menor”. E emocionava os visitantes que iam às comunidades situadas às margens do rio Goiana ouvir o lamento sentido dos que viviam da pesca e agora se sentiam privados do seu sustento porque as empresas que plantaram o bambu nas imediações e utilizavam a água do rio, usando produtos químicos para retirar a fibra do bambu e, a seguir, essa água contaminada era de novo lançada no rio matando não só o peixe, mas até o caranguejo, as famílias que viviam da pesca compuseram e cantavam com tristeza: “Mataram o rio, mataram o peixe e o pescador/ Mais uma vez crucificaram Nosso Senhor./ Mas Deus é Pai;\ dos oprimidos ouve o clamor.\ Jesus venceu e o povo vai ser vencedor”. Como os salmos bíblicos, o cantar do povo nordestino coloca para Deus a extensão d seu sofrimento e, sempre, termina manifestando sua esperança no poder daquele que é o goel, o defensor dos oprimidos indefesos. Ouçam mais essas estrofes:
“Senhores, prestem atenção/ Me escutem sem estranheza/ 3500 famílias/ no sossego de sua pobreza/ tiravam de um rio tranqüilo/ o sustento de sua mesa/ Mas vejam, o que aconteceu/ imaginem só que horror/ lá vem progresso do homem/ com poder devastador/ e da sede do lucro deles/ nem o rio escapou/
Construíram várias indústrias/ que indústrias da morte são/ e as danadas vomitaram/ só veneno e perdição/ nas águas mansas do rio/ trazendo a destruição/ Como podem os peixes de Deus/ viver nessa calda imunda/ que fede, envenena e mata/ e da morte o mundo inunda/ e essa pobre população/ hoje vive moribunda?
E termina sempre com o grito de esperança:
Apelamos até pro presidente/ que do povo é servidor/ que ele seja como Deus/ dos pobres o defensor/ Mas, se os homens não ouvirem/ o grito desse cantar/ saibam que o pescador/ muito ainda vai lutar/ direito que Deus nos deu/ ninguém vai poder tomar.
Essas poucas amostras justificam nossa convicção de que Deus continua falando através dos mais simples. Não é o que lemos no Evangelho segundo Lucas? O Cristo se empolga ao constatar que, nos seus desígnios, Deus se manifesta pela voz e pela ação dos humildes. E o Senhor deixa transbordar sua alegria nestas palavras:
“Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste essas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, assim foi do teu agrado” (Lc 10,21)
Estaríamos deixando apagar-se essa linha profética dos cristãos? Onde estão hoje os corifeus da Não Violência?. As guerras, mesmo quando envolvem as maiores potências do mundo não estão conseguindo dominar a violência. Por que nós cristãos, que temos um know-how de dois mil anos, vencendo os NEROS da história, não estamos conseguindo dominar a violência pelo amor. A lenda de Francisco de Assis com o lobo de Gubbio, o exemplos de Gandhi e de Martin Luther King mostram que o preceito evangélico de “amai vossos inimigos, fazei o bem aos que vos odeiam, rezai pelos que vos perseguem e caluniam” continua sendo o método válido para superar o ódio e a violência. Será que os cristãos não acreditam mais na força transformadora do amor que realiza o milagre de lobo e cordeiro se deitarem juntos? O que teria sido de Alagamar se os agricultores tivessem pegado em armas para defender suas propriedades? No confronto, os que não tivessem sido mortos ou presos teriam sentido a frustração de mais uma batalha perdida. O que seria do Iraque hoje se os Estados Unidos, ao invés de lançar bombas destruidoras, tivessem lançado comida, água e medicamentos para a população? Com certeza teriam feito amigos em lugar de adversários ferrenhos e teriam conquistado a simpatia de tantos outros povos. É tão simples e clara a mensagem evangélica ao situar mais no social do que no religioso a proposta de Deus para a humanidade. O religioso e importante porque fornece energias espirituais para o compromisso com o social. Sem a fé em Deus, sem o apoio da meditação e da oração, não conseguiríamos nos comprometer com o social assim como sem uma boa alimentação, não teríamos energias suficientes para o trabalho de cada dia. Assim como o alimento não é o fim; o fim é a atividade humana, também a religião não é o fim; ela fornece as energias espirituais indispensáveis para a ação. Quando o Cristo faz sua primeira proclamação na sinagoga de Nazaré, ele se apropria das palavras do profeta Isaías e diz: “O Espírito do Senhor está sobre mim, pois ele me consagrou com a unção,.para anunciar a boa nova aos pobres, enviou-me para proclamar a libertação aos presos e, aos cegos, a recuperação da vista, para dar liberdade aos oprimidos e proclamar um ano de graça da parte do Senhor” Lc 4, 18-19) As boas notícias incidem todas elas no campo social e não no religioso. A mensagem é clara: não podemos nos refugiar no religioso como numa arca de Noé enquanto a multidão dos outros homens vai se matando e se destruindo, dominados pela ambição e por outros vícios. Só nos preservamos na medida em que envidarmos todos os esforços para que se realize o desejo de Cristo: “Tenho ainda outras ovelhas que não são deste redil; também a essas devo conduzir, e elas escutarão a minha voz, e haverá um só rebanho e um só pastor” (Jo.10,16). Não valeria a pena testar o próprio Deus e acreditar no humanamente impossível? Ou não valem mais para nós os exemplos de Abraão, que tinha cem anos quando lhe nasceu o filho da promessa, Isaac. De Moisés, que não conseguiu colaborar com seu povo na juventude, mas, agora, aos oitenta anos de idade, deve iniciar a condução do povo hebreu da escravidão do Egito para a libertação. De Isabel, que, na velhice, concebe e dá à luz João Batista, o Precursor. Da Virgem Maria que acreditara na mensagem do Anjo que lhe viera dizer, da parte de Deus, que ela seria mãe do Redentor sozinha, sem intervenção masculina. De Simão Pedro, caminhando sobre as águas? Ou estaríamos substituindo a fé no poder de Deus pela segurança dada pelo progresso humano? A saga de Alagamar, que não foi única, mas se destaca, na constelação dos numerosos bons exemplos dados pelos mais humildes, nos vem dizer que não teríamos nada a perder se voltássemos à escola da Não-Violência que, na prática, faz eco com a bem-aventurança evangélica: “Bem-aventurados os mansos porque receberão a terra em herança” (Mt. 5,5). O desafio está lançado para todos os cristãos, para todos os homens e mulheres de boa vontade.
Recife-09.11.2006